sábado, 16 de março de 2013

A Cospiração dos Crentes*

 16/03/13

A cospiração dos crentes.

 
Na rotineira busca de modos de entender a crise fiquei ontem mais uma vez com a forte impressão de que, no pano de fundo dos gráficos e dos raciocínios de economistas encartados e amadores, se vislumbra sempre este facto: a riqueza transfere-se dos rendimentos do trabalho para o sector financeiro há umas quatro décadas (1), (2).

Vejamos, enquanto nós em Portugal ainda estávamos isolados do resto do mundo, nos países ocidentais do hemisfério N e, surpreendentemente, na esteira dos libertários anos 60, o trabalho começou a transformar-se com o início da utilização de semicondutores (transístores); antes as economias industriais necessitavam de contar com populações com formação muito mais apurada e demorada de adquirir e não era fácil substituir os trabalhadores, pelo que estes mantinham um elevado grau de influência nas decisões políticas dos seus países. Actualmente nos países desenvolvidos o trabalho e o emprego concentram-se no sector terciário e as tarefas em todos os sectores estão enormemente facilitadas e regidas por sequências de procedimentos standartizados que se podem executar sem exigir conhecimentos gerais sólidos nem hábitos de raciocínio responsável, ter capacidade para avaliar situações ou tomar iniciativas. Outras actividades de produção de componentes ou de peças são hoje tão pouco exigentes que são fácilmente instaladas ou transferidas de um continente para outro ao encontro da mão-de-obra mais barata, reduzindo ainda mais a oferta de emprego nos países desenvolvidos ( do ponto de vista dos povos em vias de desenvolvimento ou dos BRICs isto é essencialmente justo, claro).

Aparentemente restrita ao domínio económico, aquela evolução foi acompanhada por uma transformação cultural regressiva; perfeitamente em harmonia com a mudança da natureza e âmbito das aptidões necessárias ao exercício das actividades profissionais, isto é, a mudança do perfil do 'trabalhador modelo', ocorreu também uma mudança insensível no perfil do 'cidadão modelo' que consequentemente arrastou reformulações em todos os outros aspectos em que dividimos as coisas humanas.

Neste intrincado sistema de interdependências e 'interconsequências' talvez a linha mais perceptível seja o que aconteceu com os conteúdos das indústrias de entretenimento e informação e no consumo em geral, cujos produtos se tornaram superficiais, básicamente apelativos, pouco reflectidos, de usufruto rápido, e substituídos em catadupa tentando acompanhar a aceleração que as técnicas publicitárias permitiram impôr, motivadas pelo benefício imediato das economias. Simultâneamente satisfez-se o desejo das audiências e, na voragem da concorrência, acelerou-se a infantilisação das populações. Curiosamente aplicou-se o mesmo modelo que se mostrou eficaz na nova produção industrial às funções de toda a sociedade, especialmente a desvalorização do contributo pessoal residente na imaginação e na personalidade e sobretudo na liberdade de cada pessoa, substituídos progressivamente por procedimentos sistemáticos simples. A evolução dominou àreas fundamentais como a governação, o Direito e a Educação.

Elemento crucial, a Educação adaptou-se igualmente à realidade político-económica. Inexplicávelmente abandonaram-se as pedagogias fundadas na comunicação afectiva e no apetite de aprender que estavam a ser desenvolvidas e ensaiadas; encurtaram-se e amputaram-se as aprendizagens e previlegiou-se a rapidez na aquisição da capacidade de executar as tarefas simplificadas com que os novos métodos de produção se bastam e que por sinal poderiam ter a sua eficácia diminuida se lidassem com cidadãos formados nos princípios daquelas pedagogias. Note-se que isto se passa já há tanto tempo que uma boa parte dos professores agora em funções já foram educados no decurso desta evolução ou foram obrigados a compensar as suas frustrações tentando adoptar outras filosofias potencialmente redentoras. No âmbito da vida familiar foram afastados os avôs e as avós, e os pais obrigados a vender a maior parte do seu tempo para cumprir a função social do seu grupo etário, destruindo-se os mecanismos de vinculação geracional e de transmissão da cultura essenciais à nossa espécie, substituindo-os pela exposição directa e acrítica dos seus filhos aos media e á oferta tecnológica.

Pensando nos dirigentes em geral, nos políticos, economistas e deputados, nos magistrados e mesmo nos cientistas ou académicos, pode verificar-se, a meu ver, que sobre as suas pessoas e os seus herdeiros espirituais também funcionou a tendência evolutiva daqueles anos sessenta até agora. Acresce que, do mesmo modo que um nova especialidade - a Publicidade - se entrosou na evolução cultural, benvinda pelo público, agentes económicos, políticos e economistas, (causando apenas algumas testas franzidas...), e foi irresistívelmente prosseguida face ao benefício imediato que trazia às economias, também a actução daqueles se foi modulando, individualmente e em grupos, pelas 'maneiras de fazer' cada vez mais apressadas, menos criativas e menos cautelosas em que o seu universo intelectual se tornou. Não se pode já ganhar eleições ou fazer investigação científica sem prestígio no mercado, o que parece não exigir própriamente uma contabilidade certinha.

Após séculos de humanas e brilhantes iconoclastias em ritmo cada vez maior, nos últimos 50 anos deixámos ficar algures a ponta do fio de Ariadne geracional que nos ligava aos nossos avós e descuidámos as ferramentas para as Artes e as Ciências que, nalguns períodos a grande custo, alguns teimaram em manter vivas. Se não formos já capazes de as reinventar Prometeus poderá enfim ficar liberto da sua culpa e Ésquilo e os seus compatriotas saberão a resposta às suas inquietações. Entretanto continuamos incapazes de reflectir fora do espartilho que se desenvolveu na nossa realidade cultural, que nos obliterou e 'semantizou' a Democracia e os Ideais um a um; vamos sendo crentes tolos de uma não identificada espécie de religião, que transfigura a Liberdade e as personalidades a troco de ... conforto? ... segurança? Mas qu'é delas?  

(1) por exemplo http://www.miguelangeldiez.com/2013/01/20/austeridad/

 (2) de presseurop.eu:

- littledirtyitalian 28.02.2013 | 20:18 Link
Oui les marchés ont leur logique propre, mais les Etats, travaillant à l'unisson, conservent la capacité d'infléchir les décisions.
Yes, according to an IMf study, between 1946 and 1980 the real average interest rate on debt bonds in advanced economies has been negative (-1,6%), and negative as well has been the discount rate (-1.1%):debt stocks went down. Then , we entered a new era.


* - Extraído do blogue http://calcinhas01.blogspot.pt/, cujo autor é um dos três feitores deste blogue "A Gazeta Saloia".

 

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