domingo, 16 de novembro de 2014

As "Buracas" de Armês

Em Armês, pequena povoação junto a Lameiras, Terrugem, existem umas curiosas construções em pedra que se designam por "buracas".

Algumas fotografias:

A revista digital de história, arte e património "Tritão" descreve e enquadra as "buracas" - http://revistatritao.cm-sintra.pt/index.php/patrimonio/buracas-armes-terrugem:
 
Segundo os testemunhos arqueológicos – especialmente epigráficos e arquitectónicos – poder-se-á recuar o início da exploração de mármores, nas terras sintrenses, à época de Augusto.

Na verdade, terá sido durante o seu imperialato que o ager a oeste da velha Olisipo, entretanto elevada à condição de municipium civium romanorum, conheceu inusitada prosperidade, assente na indústria de extracção e transformação da pedra. Esta, a par de uma economia basicamente agrária, acabou por se tornar, sobretudo durante os séculos I e II da Era, numa das mais significativas actividades económicas deste território, porque, tal como o afirmou Cardim Ribeiro, os habitantes desta zona não deixaram «de explorar, em grande escala, as ricas pedreiras de mármore localizadas perto das actuais povoações de Lameiras e de Armés – além de outras menos importantes e distribuídas pelos arredores –, facto que sem dúvida alguma contribuiu, de forma absoluto decisiva, para o acentuado desenvolvimento da região».

Para além da mera extracção da pedra as evidências arqueológicas indiciam a existência de muitas outras actividades complementares, tais como oficinas de desbaste e afeiçoamento de mármores, quer se destinassem à arquitectura, à epigrafia ou à escultura.

Será, pois, neste contexto que se poderá entender a personagem de Lucius Iulius Maelo Caudicus, flamen do divino Augusto que, por volta de 20 d.C. erigiu em Armés, para usufruto comum, marmórea fonte. Este sacerdote do culto imperial, um indígena que ascendeu económica e socialmente na magistratura municipal, seria também detentor de uma pedreira e de oficinas de desbaste, conforme vestígios que se detectaram na villa da Granja dos Serrões, cuja propriedade lhe poderá ser assacada através de inscrição votiva, por ele dedicada a Júpiter.

Depois de Adriano, notou-se um decréscimo na produção e transformação dos mármores sintrenses e, as vicissitudes de uma História conturbada conduziram ao em quase desaparecimento desta actividade económica. Na verdade, poder-se-á constatar este fenómeno, ao apreender que o labor visigótico se limitou ao reaproveitamento de antigos monólitos romanos e que, já em plena medievalidade portuguesa, as grandes obras românicas e, depois, góticas, da vila cortesã e seus arredores, se ergueram à custa dos granitos da Serra de Sintra, enquanto que o renascimento preferiu os vidraços da Várzea e os calcários de fino talhe.

Foi, portanto, longo o esquecimento que os mármores sintrenses conheceram e, não fora a construção do magnânimo convento de Mafra (1717-1744), aquela actividade teria perecido nas entranhas da terra e do tempo. Todo este fervilhar de vida e suor em torno das pedreiras e oficinas do termo sintrão foi, aliás, magistralmente descrita por José Saramago, no seu Memorial do Convento:
«Vai ser uma longa jornada. Daqui a Mafra, mesmo tendo el-rei mandado consertar as calçadas, o caminho é custoso, sempre a subir e a descer, ora ladeando os vales, ora empinando-se para as alturas, ora mergulhando a fundo, quem faz as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, se as errou, foi na falta, não que estejam de sobra. Os moradores de Pêro Pinheiro desceram à estrada para admirar o aparato, nunca se viu tanta junta de bois desde que começou a obra, nunca tão alto se ouviu vozear, e há quem comece a ter saudades de ver partir aquela tão formosa pedra, criada aqui nesta nossa terra de Pêro Pinheiro, oxalá não se parta pelo caminho, para isso não valia a pena ter nascido».

De facto, a promessa de João V – de que sobejou imensa coluna caída na berma da estrada de Pêro Pinheiro – restaurou uma actividade ancestral e resgatou ao esquecimento um modo de vida que, séculos antes, ditara grande parte da riqueza do ager. Reiniciada a exploração dos mármores, no evo setecentista, aquela actividade foi prosperando, até porque, concluído o régio devaneio, houve necessidade de se proceder à reconstrução de Lisboa, grandemente arriada pelo terramoto de 1755, conforme nos esclarecem, entre outros documentos, as Memórias Paroquiais alusivas à freguesia da Terrugem: «duas pedreiras que nella há, huma no lugar das Lameiras; e outra no lugar de Fervença; das quais se corta e tira pedra para as obras Reaes, e para a Patriarchal».

Para além de toda esta frenética actividade, a indústria da pedra foi-se diversificando, sendo, por isso, também frequente encontrar-se nas casas saloias óculos de iluminação, cantarias, poiais, salgadeiras, almofarizes, pesos de lagar e mós esculpidas em mármore, quase todas talhadas manualmente, e datando de uma altura em que o trabalho «era executado em pequenos cubículos intencionalmente separados uns dos outros, de molde a que os “operários” não perdessem tempo em conversas, nem tivessem oportunidade de se aglomerarem… Exemplo significativo do ambiente laboral na incipiente sociedade industrial portuguesa de oitocentos…», como o bem exemplifica uma oficina daquela época que persiste parcialmente intacta à entrada do lugar de Armés, cuja estrutura primitiva lhe valeu o cognome de “Buracas”.

A Revolução Industrial teve como consequência o agudizar as características próprias destas gentes, face às demais populações saloias, bem como permitiu que os antigos métodos de exploração arcaica fossem, pouco a pouco, substituídos por uma série de engenhos mecânicos que facilitaram os trabalhos de extracção e transformação das rochas ornamentais.

Mas foi, apenas depois de 1940, que a mecanização maciça da indústria permitiu que se atingissem índices de exploração inusitados, bem como a exportação de pedra em grande escala. A súmula destes factores potenciou a criação de uma verdadeira classe operária que, apesar de tudo, ainda se arrastavam “Gargantada” acima, até às pedreiras e oficinas, onde trabalhavam duramente em troca de baixos salários as gentes da Cabrela, facto que conduziu, no dia 19 de Maio de 1965 – data singelamente recordada em placa toponímica numa das ruas de Cabrela –, à revolta dos operários prontamente silenciada, aliás, pela guarda que cercou também as aldeias de Montelavar e Pêro Pinheiro.

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